Pela consideração que o nosso presidente ainda merece e o respeito que ele exige de todos os seus críticos por ocupar o cargo que ocupa dei-me o trabalho de analisar uma passagem do seu discurso de fim de ano. Ele merece! Fiz isso pensando que o discurso foi elaborado numa situação em que o discursante teve tempo o suficiente e momentos de lucidez que foram usados para elaborar uma obra que tem como objetivo, além de chamar atenção, influir na capacidade de agir do cidadão angolano e de quem quer que leia o discurso em questão.
O que me motivou a escrever esse artigo está longe de ser um ato de provocação, fui motivado pelo entendimento que tenho sobre o homem José Eduardo dos Santos, sobre o seu passado de militante “comunista”, líder do MPLA e Presidente há mais de trinta anos, ex-combatente e guerrilheiro na luta pela libertação do país. Mas também tive em conta que os tempos passaram, os discursos podem mudar. E isso pode ser, talvez, o lado frágil desse artigo. Tive em conta que José Eduardo dos Santos é o grande herdeiro político de Antônio Agostinho Neto. Os mitos dizem que quando este viajou a Moscovo para se tratar e pensando na possibilidade da morte deixou até uma espécie de carta fechada como voto de opinião sobre quem tinha condições de lhe substituir. Esta crença para mim nunca foi levada a sério, mesmo podendo ser verdade e tendo sido possível. E nem interessa tanto para a nossa análise. Ainda assim, tendo em conta a época em que nosso “herdeiro” chegou ao poder é de imaginar que ele estava entre os melhores militantes do MPLA, os capazes, entre os mais destacados e exemplares. Sem contar sua alta formação, política e ideológica, “que nunca ninguém pois em dúvida”, ao menos entre os militantes do MPLA ou aqueles que mais próximo vivem dele –e o conhecem pessoalmente. Não esquecer que até mesmo no último Congresso do MPLA ele foi ratificado para continuar no cargo por aproximadamente 1974 militantes congressistas, só 26 se opuseram a sua continuação.
É com a bagagem encima, que carrega o homem em suas costas, que me detive na seguinte passagem do seu discurso. E me detive para tentar ajudar o mesmo a transportar sua bagagem. É claro longe de todas as presunções e pretensões. Mesmo porque cada um de nós, fazendo uso da amabilidade e do cavalheirismo, pode se dispor a fazer isso. Tal gesto não constitui uma missão de gigantes.
A passagem é a seguinte, o segundo parágrafo do discurso: “É nesse momento que ganha força a convicção de que cada cidadão, é de fato, responsável por forjar o seu próprio destino, por aperfeiçoar o seu modo de estar no mundo, por melhorar a sua vida familiar e por se integrar de forma mais harmoniosa na comunidade e no seu meio social”.
Não tenho formação específica em áreas de humanas que me ajudariam a desvendar segredos e manias através de rastros e passos deixados por alguém ao se manifestar através de qualquer meio. Por isso peço compreensão e ajuda nas minhas análises. E ponho à disposição aquilo que tento pesquisar diante de qualquer especialista muito mais gabaritado para que corrobore ou não o que poderei afirmar aqui:
Acredito que em qualquer discurso falado ou escrito, principalmente quando o mesmo for racionalmente bem elaborado, como é o caso do discurso anual de um presidente, a quantidade de palavras usadas, no discurso, sempre reflete o grau de intenção do sujeito; o que ele verdadeiramente quer transmitir, o que deseja e como quer persuadir seus interlocutores ou ouvintes. Reflete o grau de preocupação em transmitir a mensagem. A palavra pode ser uma espécie de “chicote” quando se quer alertar e chamar atenção, pode ser uma forma de vestimenta ( roupas) quando se quer fazer sentir a presença da pessoa que está discursando. Pode retratar o que somos e o que desejamos dos outros.
A palavra “família” foi a mais repetida num discurso de 1094 palavras, ela apareceu oito vezes em sete parágrafos, num conjunto de quase trinta parágrafos. A propósito, a palavra “corrupção” não aparece nenhuma vez. E a palavra “governação” aparece como sinônimo de êxito e algo esperançoso. Falando de propósitos, a palavra “corrupção” é a palavra menos mencionada pelo Presidente da República em qualquer discurso ou entrevista cara que o mesmo tem oferecido à imprensa. Geralmente tal palavra é incumbida a assessores e à turma dos defensores bajuladores.
Desta vez estamos interessados na palavra “família”, vendo a mesma no discurso dá para ver que ela aparece como núcleo da principal ideia do discurso e de um novo ideal que se está formando na sociedade angolana, do individualismo e do oportunismo que a só a burguesia sabe nos incutir.
De que o bem estar e o êxito de cada um de nós passa pela sorte de termos nascido numa família bem estruturada isso não é segredo. O segredo, e isso está no discurso, é saber do limite que essa tem e das responsabilidades que a Sociedade e o Estado têm a encarar. Para que a aquele, os limites, na verdade, se confundam de tal forma que a responsabilidade de todos não tenham fronteiras.
Interpretamos no discurso, inovador, que existiu uma intenção deliberada de empurrar-se as responsabilidade do estado e da sociedade à família. Sendo essa ou não a intenção, a família sempre será o ambiente onde todos os nossos sonhos podem amadurecer. Estamos dizendo amadurecer e não se realizar. A realização de um sonho vem quando o Estado e a Sociedade está em condições de oferecer as imensas oportunidades que de direito e obrigação a família espera dessas duas últimas entidades. O segundo parágrafo do discurso do presidente é aceitável como ideal de vida e algo inerente a sobrevivência de cada um de nós, já que o mesmo está sendo evocado num contexto que exige o esforço individual de cada um dos sujeitos e induzido pela crença que enfoca no homem ( no individuo), e só a ele, a responsabilidade do seu destino. Ou seja, só aceitamos aquela visão presidencial se estarmos diante de uma visão egocêntrica da vida. Em que, por exemplo, quem não consegue emprego, uma boa escola para matricular seus filhos, saneamento básico para se livrar do paludismo, da cólera, das diarréias e outras doenças será o único culpado de toda essa situação. Não é!?
Se for assim o presidente nos dá motivos para que cada um de nós cidadãos angolanos tenhamos direito de agir civicamente lutando por nossos direitos. Ou seja, quando um pai de família, ou jovem estudante, sai pelas ruas clamando pela liberdade, pelo direito de transparência da coisa pública e outros direitos, é claro, que não está só fazendo para molestar e “agredir” o governo e as autoridades, mas faz isso: primeiro, por toda a sociedade e, segundo, pela sua família. Em outras palavras, a luta pelo bem estar das nossas famílias passa por tudo: pelo direito de sabermos aonde são investido os recursos públicos, os impostos que são de todos os angolanos, os destinos que se dão as nossas riquezas ( petróleo, diamante, café, ferro,..etc).
Este articulista contrariando o segundo parágrafo do discurso do presidente é defensor de uma visão que responsabiliza o Estado e a Sociedade pelos destinos do individuo e de toda a família. E não aceita que a família seja responsável pela desgraça social e ainda pela existência de um Estado corrupto, ineficiente, delinqüente e incompetente. Na verdade, nossa visão é a de que deve existir um processo de realimentação, o Estado e a Sociedade deve existir para a família e servir a esta, assim como a família deve existir e servir aquelas duas entidades, afastando-se do ideal reacionário burguês de que só a família tem culpa do seu destino. Sendo ou não a intenção do presidente condenamos aquele segundo parágrafo do seu discurso.
Primeiro, pelo seu passado e história que não merece a que o mesmo se exponha dessa maneira, como se fosse a entregar-se completa e totalmente aos vícios ideológicos de uma classe que tanto ele “combateu” no passado: a burguesia tida como uma classe elitista, reacionária e racista. O conceito de família para aquela classe, a burguesia, geralmente transborda no racismo, numa atitude altamente conservadora e de direita . É um resquício medieval das lutas entre os burgos e o feudalismo decadente, uma época que já se foi. A pergunta que vale um milhão é: de que lado você está José!?
Continuando, faz-se da palavra “família” um subterfúgio para se defender o que há mais de podre dentro de si: seu egoísmo animal e oportunismo bárbaro que caracteriza o homem das cavernas. A sociedade humana, mesmo atravessando a era do Capitalismo, evoluiu tanto que hoje fica difícil distinguir os limites de responsabilidades da família com a do Estado. Só um estado entregue, completa e totalmente, à burguesia pode evocar esse tipo de discurso. Não esperávamos isso de José!
Em segundo lugar, para nós os angolanos a responsabilidade do Estado deve ser vista sim como algo ilimitada. Assim é em quase todas as latitudes geográficas, e senão, deveria ser assim. Essa é uma cultura que deve ser criada e incutida por um Estado que existe e tenha uma visão social de tudo que faz, um Estado de todos tem que se sentir responsável por tudo. Afinal de contas quem fez a guerra ao longo destes trinta e cinco anos? Foram uns poucos? Todas as famílias angolanas direta ou indiretamente participaram nas duas guerras, ou todas as guerras que surgiram em Angola desde 1961, com seus seres queridos. Por que quê na hora de se dividir o bolo Estatal umas devem ser vistas como mais responsáveis e outras menos responsáveis diante da missão social de construirmos uma nação?
Sabemos que hoje em Angola existem famílias e pessoas que se dão até o luxo de comprar Bancos em Portugal. Acreditar que essa atitude é simplesmente um êxito individual e pessoal destas famílias é uma hipocrisia sem fim e uma mentira descabida. Sabemos que estas pessoas, por destino ou não, sempre tiveram ajuda e contribuição do Estado e da Sociedade direta ou indiretamente. Sabemos todos que essas conquistas é como consequência da participação de milhões de angolanos que lutaram para conquistarem a independência e manter as mesmas conquistas até os dias de hoje. Todas as batalhas travadas no território nacional onde morreram centenas e até milhares de Angolanos contribuíram no êxito de cada uma dessas famílias ou pessoas. Falo dessas famílias, mas o exemplo serve para todas as famílias em geral.
Assim, em Angola, como em qualquer parte do Mundo, ninguém pode se gabar por conquistar o que tem conquistado só como esforço próprio e individual. “Nenhuma obra humana por mais individual que aparente ser é totalmente individual”.
Assim, um discurso do chefe de Estado Angolano, um ex-comunista, um herdeiro de Agostinho Neto, deve saber fazer prevalecer o social e o Estatal em detrimento do individual. Mesmo que deste não se esperam aquelas atitudes (comunistas) como consequência da mudança para com os novos tempos, mas uma cultura e educação bem forjada não pode ser deletada da vida de um personagem de um dia para outro.
Ao meu entender, nunca esperei do Líder JES atitudes e motivações que levassem alguém a dizer “ele não nasceu para estar entre nós ( entre a burguesia)”, “mesmo fingindo ser como nós, da para notar sua ascendência de comunista”. Porque é difícil, para muitos mortais rejeitar os vícios, as manias e hábitos que o mundo burguês tem a disposição de todos (ninguém deve se sentir obrigado a rejeitar tais ofertas) . Mas como disse, anteriormente, convicções são convicções e não podem ser apagadas de um dia para outro, principalmente quando nos encontramos numa posição privilegiada: a de Presidente da República.
Para José, na sua posição, ficaria mais fácil preservar sua honradez (comunista) e como consequência um discurso menos reacionário. Nós aqui não pedimos e nem exigimos tanto do homem, só o discurso seria mais do que suficiente.
Um Feliz Ano Novo!
Nelo de Carvalho
Nelo6@msn.com
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